Celulares velhos deixam milhões de reais em ouro no lixo
Créditos: Superinteressante |
O
smartphone que você carrega no bolso tem R$ 4,20 de ouro e R$ 0,63 de prata.
Achou pouco? Agora considere que existem no Brasil cerca de 170 milhões de
smartphones em uso – o que totaliza nada menos do que R$ 821 milhões só em ouro
e prata. Uma verdadeira fortuna, e que não para de crescer: a cada ano, em
média, 47 milhões de pessoas trocam de
smartphone – e os metais preciosos contidos nos aparelhos antigos, cujo valor é
estimado em R$ 316 milhões (veja infográfico na página 48), ficam
esquecidos no fundo da gaveta. Pode não parecer, mas os aparelhos eletrônicos,
mesmo os mais baratos, contêm bastante ouro. É que o ouro é um excelente
condutor de eletricidade e demora muito para se degradar, ou seja, é ótimo para
os circuitos internos de gadgets em
geral. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, existem nada menos do que 500
milhões de aparelhos eletrônicos nas casas dos brasileiros – e isso contando só
os que já foram aposentados e estão sem uso. Mas a proliferação de gadgets está
se tornando um problemão. “O mundo produz 41,8 milhões de toneladas de lixo
eletrônico por ano”, explica Ruediger Kuehr, secretário-executivo do programa da ONU
sobre lixo eletrônico. Isso dá aproximadamente 6 kg para cada pessoa – ou o
equivalente a 32 iPhones.
Reciclar eletrônicos é difícil, mas é necessário: inclusive porque, se não
fizermos isso, uma hora não vamos mais ter como fabricar novos gadgets.
Para cada um deles, haverá um momento em que as reservas vão acabar. Um estudo
da Universidade Yale analisou 62 metais usados em smartphones e gadgets em
geral – e constatou que 12 deles simplesmente não têm substituto. “Todos nós
gostamos dos nossos celulares. Mas será que, daqui a 20 ou 30 anos, ainda vamos
ter acesso a todos os materiais necessários [para fabricá-los]?”, questionou a
cientista Barbara Reck,
coautora do estudo.
A humanidade sabia que isso ia acontecer. Já em 1865, bem antes da era digital,
o economista William Stanley Jevons identificou o problema. Enquanto o mundo
todo dizia que a demanda por carvão diminuiria porque as máquinas estavam se
tornando mais eficientes, Jevons afirmava que a evolução da tecnologia
levaria os produtos a se tornarem mais acessíveis. Logo, as vendas melhorariam
e o consumo de carvão aumentaria. Foi o que de fato aconteceu. Recentemente,
pesquisadores do MIT analisaram o mercado atual de eletrônicos à luz dessa
teoria, conhecida como Paradoxo de Jenver. Concluíram que, sim, os recursos
naturais, os metais valiosos, as terras-raras, tudo isso vai ser mais consumido
porque a demanda vai aumentar. “O avanço da tecnologia, por si só, não garante
sustentabilidade. Pelo contrário”, afirma o especialista em engenharia de
materiais Christopher Magee, um
dos autores do estudo.
Outro problema é o impacto ambiental. Para extrair o 0,034 g de ouro que vai em
um único celular, é necessário escavar 10 kg de terra de minas. A fabricação do
aparelho todo consome 13 mil litros de água, e emite 16 kg de CO2 – a mesma
poluição gerada ao rodar 320 km com um carro popular. Em suma: cedo ou tarde,
vamos precisar reaproveitar o lixo eletrônico da mesma forma que hoje fazemos
com as latinhas de alumínio (98% delas são recicladas).
Esse tipo de reciclagem está engatinhando, mas já existem companhias
especializadas nele. No centro de reciclagem da empresa Sinctronics, em
Sorocaba (SP), o processo começa pela separação das partes úteis, ou seja,
peças que estejam funcionando e possam ser reutilizadas. Depois, o que sobra é
processado de acordo com seu material. A fábrica começou a operar em 2012 e
conta com cem funcionários, que reciclam 95% de tudo o que entra ali – os
demais 5% são usados por outras indústrias, como as de cimento, para gerar
calor. Nada é descartado.
Depois de separados, os plásticos são triturados e derretidos. Uma máquina extrusora, que
parece um funil gigante, transforma o material numa espécie de macarrão grosso,
que é esfriado em água e depois picado em pedacinhos minúsculos. Esse plástico
vai para máquinas injetoras, que criam peças novas, como alças para embalagens
de papelão ou peças de impressoras – a HP é uma das maiores parceiras da
companhia.
Já o metal é levado a um moinho, onde passa por um processo de separação
magnética. O ferro cai numa bandeja e segue para empresas de materiais de
construção. O alumínio e o cobre são vendidos para parceiros, que os fundem. O
que sobra de plástico preso ali segue para aquele outro processo.
Você deve estar se perguntando: e o ouro? Ele está dentro das placas de
circuito impresso, que não são processadas no Brasil. Elas são vendidas para as
únicas cinco usinas de reciclagem no mundo devidamente equipadas para extrair o
metal amarelo, na Alemanha, na Bélgica, no Canadá, na Suécia e no Japão. É isso
mesmo: nós não ficamos com o ouro. “Eu consigo extrair ouro de uma placa. Já
fizemos isso em laboratório. Mas os ácidos que usamos são muito
poluentes. Para compensar os riscos ambientais, precisaríamos de um volume
muito maior de placas”, explica Carlos Ohde, diretor da Sinctronics. O
processo só vale a pena quando é realizado em larga escala: cada fábrica
especializada nessa tarefa lida com 18 mil toneladas por mês – mais que o dobro
de tudo o que o Brasil inteiro recicla em um ano. “Mesmo que todo o Brasil
mandasse seus circuitos para cá, não seria suficiente”, afirma
Carlos.
É por isso que apenas meia dúzia de empresas de países desenvolvidos (como a
belga Umicore,
líder mundial) recebem placas do mundo inteiro. “O Brasil ainda não possui
tecnologia para extrair os metais das placas de circuito impresso [em larga
escala]. O investimento necessário é muito alto”, reforça Daniela Moraes,
professora de gestão da produção no Instituto Federal do Espírito Santo.
RECICLAGEM DO MAL
Tem gente que tenta extrair os metais preciosos na marra. É o que acontece em Guiyu, na
China. Oficialmente, é o maior centro de reciclagem de e-lixo do
planeta, com 60 mil pessoas processando 8 milhões de toneladas de peças
eletrônicas por ano. Na prática, é um dos lugares mais poluídos que existem.
Ali, famílias trabalham separando as peças, e depois cozinham tudo o que é
pequeno demais para abrir. Incluindo os circuitos.
Cenário parecido é observado em Baotou, também na China, capital mundial da
exploração de terra-rara, onde a falta de cuidado com o meio ambiente expõe os
2,3 milhões de habitantes da região a chuvas ácidas e água contaminada com
urânio.
O resultado é ouro, sim. Mas o processo libera gases tão tóxicos que 80% das
crianças dessas regiões estão contaminadas com chumbo no sangue. A reciclagem
sem o menor cuidado acontece também na Índia, no Paquistão e na África –
especialmente em Gana, na Nigéria e no Quênia. Em Nova Déli, 25 mil pessoas
trabalham processando lixo eletrônico – tudo sem a menor proteção.
Desde 1989 existe a Convenção de Basileia, que estabelece normas globais para o
manejo de equipamentos eletrônicos e restringe a exportação deles. Os Estados
Unidos, que estão entre os maiores exportadores de lixo eletrônico do mundo,
não assinaram a convenção nem aprovaram novas leis que buscavam melhorar esse
quadro. De toda maneira, em vários países os próprios fabricantes são
pressionados a criar programas de reciclagem. A Apple, por exemplo, tem o seu.
Em 2015, recuperou uma tonelada de ouro – tudo vindo de gadgets
reciclados.
No Brasil, desde 2010 os fabricantes são obrigados por lei a pegar de volta
eletrônicos usados (você pode entrar em contato com eles e solicitar a
devolução). Mas quase ninguém sabe – e, por isso, reciclamos apenas 2% de nosso
e-lixo.
O mais impressionante é que, desse total, apenas 1% vem dos consumidores. Todo
o resto da reciclagem, 99%, é feito a partir da sucata eletrônica fornecida por
grandes empresas. Elas têm todo o interesse em reciclar lixo eletrônico –
porque já perceberam que ele, mais do que um abacaxi ambiental, também pode ser
uma verdadeira mina de ouro.
Fonte: Superinteressante
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